Tentações
Vindo para cá, eu trouxe meu telefone celular comigo. Com
ele, trouxe na carona os mil e um algoritmos das redes sociais e da internet,
projetados para me agradar, me atrair e, quem sabe, me manipular. Você sabe bem
do que falo. Às vezes passamos horas pesquisando um relógio na internet e não
achamos, mas quando abrimos a nossa rede social predileta logo se nos
apresentam propagandas bem chamativas do exato relógio que procurávamos. Talvez
nem seja necessário tanto. Há quem desconfie que esse celular que você agora segura
na mão está nesse exato momento esquadrinhando suas expressões enquanto lê o
que escrevo e, dependendo da sua reação, vai tratar de evitar que este conteúdo
chegue a você novamente. Por outro lado, se a sua cara mostrar extremo
interesse pelo que este autor escreve, então a próxima vez que eu postar algo
será a primeira coisa que verá quando pegar o celular.
Ontem mesmo eu quis fazer um exercício para pôr o sangue a
circular e saí para correr. A fim de burlar o sistema, deixei meu celular em
casa. Não precisava que ele ficasse a cada segundo registrando meu trajeto e
meus passos. Chegando em casa, no entanto, depois de tomar um gostoso banho,
abri a rede social, e em menos de cinco minutos ali fui exposto a duas
propagandas de equipamentos de atividade física. E eu nem levei meu celular!
Já experimentei situações macabras, ao ponto de esse
instrumentozinho tecnológico do capeta me mandar um aviso dizendo que estava na
hora de voltar para casa e me mostrando o caminho de volta.
Outro dia, ainda em Cuiabá, quando ia comprar a mala para
trazer na viagem, eu fui a uma loja. Dessa vez levava meu aparelho, mas em
momento nenhum eu toquei nele. O bichinho ficou confortavelmente guardado no
bolso da minha calça. Quando voltei para meu lar, o google me perguntava o que
eu tinha achado da loja de malas. O que me causou enorme espanto é que o
Shopping onde fui ver a mala tem uns três ou quatro pisos. Se o responsável por
essa vigilância sobre mim fosse o GPS, imagino que ele teria de me perguntar de
no mínimo três lojas, que ficam na mesma vertical. Como ele sabia que eu estava
justamente na loja de malas?
Se essas tecnologias conseguem uma precisão de metros para
saber que saímos de uma loja para entrar na que fica ao lado, é óbvio que
notariam que eu havia mudado de continente.
Quando um lugar reúne muitos jovens, todos cheios de
hormônios e sem pais para supervisioná-los, tudo pode acontecer. Cidades
universitárias são a prova máxima disso e os algoritmos (sempre eles) não
deixam passar batido. Um jovem estudante é “um mar de colágeno” cujo sal são a insegurança
e a curiosidade. Logo nos primeiros dias, um perfil fake me
mandou mensagens no chat para participar de grupos de namoro em Bragança.
Obviamente, o algoritmo notou que eu era mais um jovem carente e cheio de
testosterona longe da família. Apaguei a mensagem.
No outro dia lá estava mais uma vez a mensagem. Que
insistência.
Nas primeiras semanas, ainda sem aulas, quando não estava
resolvendo problemas com documentação, estava conhecendo outros jovens. Por
algum motivo, eles gostam muito de beber e perder a linha. Lembro-me de quando fui a primeira vez a um Pub de Bragança. Atravessando a densa névoa de todo tipo de substância que fumam lá dentro, podia-se ver socializando amigos, namorados e pais com suas crianças de colo. Sentado à mesa, foi interessante notar como assustavam-se todos quando eu dizia que não bebo. Na mesma noite, várias vezes me
perguntavam:
“Por que você não bebe? É contra sua religião? Tem medo? Tem
trauma?”
E por aí vai.
A resposta que eu tenho na ponta da língua é que eu não
gosto. Não me apetece. Na verdade, não vejo muita vantagem em beber e esquecer
o que fiz na noite anterior só para ficar um pouco mais alegre.
Um rapaz da mesa cujo nome não me lembro parecia me
entender. Uma menina gaúcha que estava ali oferecia-me um “fino” (ou chope no
Brasil) e me perguntava porque não bebia. Eu dizia que não gostava, com uma
expressão amigável para não parecer muito rude. O rapaz então pegou seu copo de
cerveja, esticou o braço na minha direção e, bebendo o copo todo de uma só vez,
falou:
“As pessoas só bebem para não se sentirem caretas.”
E riu.
Eu pedi então uma coca para beber (ou cola, como falam aqui). Não sei
exatamente o porquê, mas estava muito boa. Fizemos um brinde a alguma coisa, levantaram
seus finos, eu levantei minha coca, e, como habitual, os patuscos filmaram para
mostrar nas redes sociais. Vendo isso, tive a ideia de tirar uma eu também e
mostrar para a minha mãe.
“Mãe, não tô bebendo”, falei.
E o Luís, que mora na pousada, ouviu e falou.
“Mãe, tô bebendo!”
E todo mundo riu. Eu também, porque foi engraçado.
Há alguns dias eu vi no insta uma publicação de um baiano
que também está estudando no IPB. Ele mostrava uma garrafa de cerveja. Sobre a
imagem, uma legenda:
“Balbúrdia patrocinada pela universidade.”
A frase é uma piada que fez muito sentido para mim, mas, se você não for brasileiro, provavelmente não entendeu a referência.
A frase é uma piada que fez muito sentido para mim, mas, se você não for brasileiro, provavelmente não entendeu a referência.
No Brasil atual temos um governo antiacadêmico, que combate
as universidades e procura motivos para denegri-la. Depois que o colombiano
Ricardo Vélez, ministro da educação, foi demitido pelo presidente, entrou no
lugar dele um homem tão obscurantista quanto todo o resto do governo. Seu nome
é Abraham Weintraub. Este senhor popularizou uma palavra que muitos brasileiros
nem conheciam: balbúrdia. Balbúrdia é algazarra, é bagunça, é confusão. Segundo
o ministro, ao invés de estudar, os alunos e os professores das universidades
promoviam bebedeiras, orgias e obscenidades. Embora seja uma mentira descabida,
sua ideia escalafopédica foi recebida por muitos brasileiros como verdade,
inclusive por universitários. Eu, um acadêmico há quatro anos, sabia que isso é
uma coisa totalmente infundada, mas agora que estou estudando em Portugal até
me rio disso, porque se o ministro se escandalizava com a “balbúrdia” dos
brasileiros, então ele teria um ataque do coração se passasse um semestre em
Portugal.
A foto que o baiano compartilhara era de um passeio promovido
pelo próprio IPB. Nesse passeio, os estudantes gritavam os hinos de suas
escolas, conheciam-se um pouco mais e ouviam as autoridades do instituto a
falar. Os grupos musicais de universitários tocaram suas músicas, os estudantes
conheceram alguns lugares da cidade e no fim de tudo havia um belo banquete,
com salgadinhos, bolos, bacalhau a Brás e fino à vontade, de graça. O resultado
foi que vários colegas voltaram para casa com as pernas dando nó. Daí a
balbúrdia.
Assim
como nas tribos indígenas em que o menino precisa pôr a mão num cesto cheio de
formigas devoradoras para passar à vida adulta, na nossa sociedade temos um
ritual de passagem para a vida acadêmica. No Brasil, nos estados onde não é proibido, existe o trote. Geralmente no trote pintamos a cara,
o corpo, temos de fazer atividades, coisas nojentas e congêneres. Em Portugal,
o trote se chama praxe e é levado muito mais a sério. Existem hierarquias a
serem seguidas e um cronograma mais ou menos predefinido. Em Bragança, pelo que
percebi, trote é de dia e de noite, várias vezes na semana, por uns dois meses.
Quando dá os dois meses, ele termina oficialmente, o que não impede que continue extraoficialmente.
Em outros lugares dura o semestre inteiro. Eu não conseguiria estudar,
sinceramente.
Agora que acabou a praxe, o IPB, por meio do centro
acadêmico, promove uma semana de festas e o pessoal não falta. Deveras
admirável.
Uma noite da "receção ao caloiro" na semana de festas.
Não vou mentir. Já bebi. Tenho o costume de beber um
champanhe no réveillon com a minha família, e quando bebo algo geralmente é
vinho, só para provar. Provo para ver se é realmente bom. Costuma não ser, mas
vinho é interessante porque o gosto não fica na boca como o da cerveja. Eu bebo um pouco na pousada com meus novos amigos. É só um pretexto para mantermo-nos em contato e com o papo em dia. Ninguém fica bêbado e temos conversas de alto nível.
Se você quiser beber, beba. Não vejo problema nisso, mas é
importante seguir aquela velha instrução: se for beber, não dirija. Eu, como
sou careta, se bebo, nem saio de casa.
Agora que o início de semestre passou, acredito que essa
afobação toda vai arrefecer e vamos todos começar a estudar. Aí então a maior
tentação vai ser ficar na cama mexendo nas redes sociais, porque sol, que no meu Brasil brasileiro me
acordava às cinco da manhã com seu calor, aqui está se levantando depois das
sete, abafado pelo frio que entra até no osso.
A juventude.
Menino inteligente!!!
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