Um recomeço pessoal




     Desembarquei em Cuiabá mais uma vez. Se eu quisesse poderia fritar um ovo no asfalto só com o calor do sol.

     Minha mala não demorou nem dez minutos para aparecer. Foi um milagre, mas não posso me iludir. Durante toda a vida, minha mala sempre fez questão de demorar para aparecer e não acho que agora vai começar a mudar. Os ventos, sabendo que eu já não aguentava mais viajar, devem ter soprado as mãos dos funcionários para pegarem aquela mala cinza, só dessa vez, para me dar uma trégua.

     Lá vinha ela para o papai. A viagem demorou, mas parecia tão presente o momento em que a vi aberta pela última vez, deitada no chão. Quando a fechei em Bragança, uma parte do pano estava ligeiramente danificada, mas eu não tinha o que fazer. Quando terminei de arrumá-la, pus de pé e observei se aquilo parecia muito instável. O que não tem remédio remediado está.

     Agora, vinha ela intacta. Puxei pela alça. Conferi se estava tudo certo e segui meu caminho. A multidão aguardava de cabeça baixa as malas passarem, o que me fazia pensar que as malas que giravam não eram de ninguém.

     Algumas poucas pessoas esperavam por alguém. Assim como elas, meu pai me aguardava sozinho com máscara no rosto. Quando imaginei aquele momento, considerei a possibilidade de ele, por um instante, esquecer-se do perigo e querer me abraçar. Nesse caso, eu acenaria com um movimento que o afastasse sem precisar tocá-lo e diria:

     “Opa, não. Sem toques.”

     Mas ele estava muito consciente do procedimento e nem desatou os dedos das mãos que mantinha atrás das costas. Eu sorri, mas acho que não foi perceptível por causa da máscara. Quando nos aproximamos, viramo-nos para a porta e saímos. O céu estava perfeitamente azul, e os raios solares, cáusticos, incidiam sobre os prédios como se Deus quisesse, com energia luminosa, desinfetar o concreto dos seus germes.

     No estacionamento do aeroporto, o nosso carrinho branco já nos esperava. Numa operação minuciosa, meti a mochila e a mala numa sacola. Meu pai me deu a chave do carro e se sentou no banco de passageiro. Entrei, dei partida no carro e senti a máquina vibrar. Meu pai tem o costume de deixar a marcha engatada ao desligar o carro. Quando eu dou partida, ele dá um tranco e morre. Prevendo essa situação, engatei a marcha ré e aos poucos tirei o pé da embreagem. Fui ajustando a posição do corpo à condução do carro. Já não dirigia há um tempo, mas o instinto da direção estava dentro de mim.

     As obras inacabadas do veículo leve sobre trilhos enferrujam na avenida da FEB até hoje. A Estátua da Liberdade ainda está ali confusa sem saber o que faz em Várzea Grande. O rio Cuiabá continua passando devagar sob a ponte. Depois que se atravessa a ponte, chegar à minha casa é muito fácil, ainda mais quando já se conhece os buracos do pavimento. Passamos pela prainha, pelo Morro da Luz, logo chegamos ao viaduto da avenida do CPA e viramos à esquerda para a perimetral. Dobrando à direta, chegamos à rua e entramos no estacionamento.

     Lá da varanda, Tiago e minha mãe apontavam as câmeras dos celulares para mim para gravar o momento. Ainda bem que fizeram isso. Esse é um marco na minha vida e quero poder me lembrar dele e mostrar aos meus filhos. Não é todo dia que se passa por uma pandemia e não é todo mundo que teve a oportunidade de voltar para casa.

Saindo do carro.

     Por baixo do terno e da máscara, eu estava suado. Carregando a minha mala pesada, suei mais ainda. Uma poeira fina cobria completamente a sacola na qual a mala estava, e não queria encostá-la no terno. Esse esforço adicional cansou meu braço. Subimos no elevador e antes de entrar no apartamento, deixei meu sapato numa sapateira do lado de fora. Esse hábito nipônico virou procedimento padrão em tempos de coronavírus.

     Minha mãe, como meu pai, não me abraçou. Apenas pediu que eu fosse para o quarto. O combinado foi que eu ficaria no quarto deles por duas semanas, o mais isolado possível, conforme recomendam os expertos no assunto. Lá eu teria um banheiro e uma cama. Meus pais comprometeram-se a me dar comida pela porta, evitando o contato. Eu disse à minha mãe que não me sentia confortável em ser servido daquela maneira, mas insistiram que fosse assim. Por isso, resignadamente, cumpri o combinado e, descalço e de terno, dirigi-me ao quarto.

     Enquanto passava pela sala, Tiago falava:

     “Corouna vairus!”, e continuava, “Parece um pato com essa máscara.”

     Comovido com o amor fraternal, fechei a porta e fui tomar um banho. Meus pais deixaram algumas comidas para eu me distrair nesse tempo. Tiago selecionou oito livros para eu aproveitar durante o tempo da reclusão. Acho que foram boas escolhas. “Édipo em Colono”, “Antígona”, “O Banquete”, e “O Profeta” são pequenos, e eu leria facilmente, mas li apenas um. Já “A Divina Comédia” e “Os Miseráveis” são livros grandes, e o primeiro deles, em verso, é de compreensão intrincada. Por isso, acabei não lendo. O último era um almanaque de literatura, que é um excelente livro de consulta, mas não é tão atraente para passar o tempo.

     Eu estava fora da realidade. A partir do momento em que fechei a porta daquele quarto, não estava nem em Portugal nem no Brasil. Quando a quarentena se iniciou em Bragança, eu tive ao menos a chance de dar uma última espiadela no mundo exterior antes de me recolher, de forma que eu reconhecia o contexto em que eu estava. Enclausurado ali, estranhamente nem a voz dos meus pais e do meu irmão eu ouvia. Parecia mesmo que não havia ninguém na casa além de mim. As notícias chegavam pelo celular, o que é ruim, pois eu sofro do mesmo mal dos internautas da atualidade: recebia primeiro as notícias pelas redes sociais, e não conseguia me situar na realidade, porque não confio tanto assim na honestidade dos algoritmos.

     Boa parte do tempo, ocupei com minha flauta e meu violão. Eu pensava em fazer coisas mais sérias, mas, sempre que essa ideia piscava na mente, olhava para as cordas daquele instrumento charmoso e dizia:

     “Por que não?”

     Começava a tocar, olhar cifras, e, quando me dava por mim, já estava horas fingindo que sabia tocar algo, mas não tinha feito nada de útil. Li um livro para amenizar minha sensação de futilidade e, pronto, acabou a primeira semana.

     Na segunda semana, aproveitei para atualizar um trabalho da UFMT. Isso tirou bastante tempo, mas ao menos me sentia útil. No entanto, não é apenas com trabalhos que se faz uma vida acadêmica, mas também com decisões. Com a saída de Portugal, eu tinha três possibilidades. A primeira era manter a mobilidade à distância, tendo somente aulas online até o fim do semestre. A segunda era continuar a mobilidade e, quando as aulas voltassem, ter aulas de Portugal e do Brasil ao mesmo tempo. A terceira, por fim, era abandonar a mobilidade internacional e esperar a volta das aulas da minha universidade. Nessa reflexão, comparei os diferentes cenários que seriam desencadeados por cada alternativa e analisei a compatibilidade desses cenários com os novos anseios que surgiam com minha volta definitiva.

     O primeiro e inevitável argumento que os anjinhos me sussurravam sobre os ombros era se faz sentido fazer uma mobilidade internacional sem sair do país. Depois, eles logo me lembraram que eu tenho de arrumar um estágio e não seria fácil conciliar um estágio e duas faculdades, o que talvez fosse possível, já que as aulas portuguesas seriam na madrugada do horário brasileiro. Por fim, a voz da consciência tomou a palavra e indagou com um tom grave:

     “Estás, no Brasil, ó Mateus. Tua vida é aqui agora. Tudo que é bom passa rápido e já aproveitaste bastante.”

     Com tais ponderações viajando entre os neurônios do cérebro, fui me convencendo da decisão que deveria tomar. Para oficializá-la, expus minhas razões à Secretaria de Relações Internacionais da UFMT e pedi que fossem tomadas as devidas providências, desse jeito:

     "Bom dia,

     Espero que estejam bem.

     Escrevo este e-mail sobre minha decisão acerca da continuidade da mobilidade internacional.

     Eu estudava no IPB, em Portugal. Como informado anteriormente, retornei ao Brasil em decorrência da crise mundial gerada pela pandemia.

     Considerando que, caso continue a ter aulas da instituição estrangeira, terei aulas durante a madrugada e possivelmente das duas instituições concomitantemente;

     Considerando que, com a indefinição das futuras medidas do governo português, não sabemos exatamente qual modalidade de ensino será empregada com o fim da quarentena, o que poderá me obrigar a abandonar a mobilidade quase toda cursada;

     Considerando que, estando no Brasil, poderei retomar planos pessoais que foram paralisados quando do início mobilidade; e

     Considerando que já me sinto recompensado pelo semestre que passei fora do Brasil;

     Concluo que no quadro atual não me convém continuar a mobilidade. Por esses motivos, peço gentilmente o seu cancelamento.

     Como sempre, agradeço o bom trabalho de acompanhamento aos alunos em mobilidade e mantenho-me disponível para dirimir qualquer dúvida.

     Atenciosamente,

     Mateus Elias."

     Tentei manter a formalidade e dar a dimensão dessa decisão, com os fatores que me levaram a ela. Era necessário bater o martelo.

     Lendo e relendo o texto do e-mail, procurava uma vírgula que pudesse alterar o que eu queria dizer e, mais do que isso, alguma coisa que eu não tinha dito. Era preciso ter certeza do que estava fazendo. Com aquelas palavras, eu findava um ciclo da minha vida, um período único e cheio de emoção. Com elas, eu me aproximo do fim destas linhas. As palavras precisavam ser cirúrgicas, afinal, se eu fosse displicente e usasse uma palavra qualquer sendo curto e grosso ou, se preferir, lacônico, estaria simplesmente desperdiçando a minha chance de dar à história, composta por pessoas fenomenais e dias inesquecíveis, um final verdadeiro, à sua altura. Afinal, é difícil dizer, mas, se uma bela história precisa ter um fim, é preciso fazê-lo de uma vez por todas para que seus momentos se cristalizem na memória com a beleza que têm, ao invés de perderem o brilho com o tempo, após um fim mal dado.

     O botão “enviar” pôs um fim nesse dilema.

     Levantei-me da cadeira e olhei pela janela. A terra fritava no sol.

     Ao contrário do habitual, eu não senti um pingo de remorso. Eu estava totalmente contente com esse passo. O sentimento que corria pela minha espinha era o de recomeço. Quanta coisa boa eu vivi nessa saga que naquele momento eu terminava! Quantas pessoas, quantos lugares, quantas risadas... Todo esse passado ficará presente no meu coração. Meus netos, seus netos, poderão se inspirar nesse passado por meio dessas humildes palavras. É deveras contraditório jactar-me tanto de mim mesmo e dizer que sou humilde, mas me valho da contradição do ser humano e peço esse direito. Isso não é o fim da história, porque depois de terminada, haverá outras. Mas também não é o fim da história porque ela continua na nossa imaginação e produzirá efeitos na nossa vida. Eu sou como você, só mais um, porque cada anônimo desse planeta pode ser grandioso, pode ser inspirador e deixar para a posteridade as mais belas histórias, sendo um literato genial para contá-la por si mesmo ou um Sócrates para deixar que outros façam por si.

     A sensação de recomeço foi a mesma que senti quando, no último dia de isolamento no quarto, minha mãe abriu a porta de manhã. A porta ficou aberta e, como meu pai disse, só estava chegando agora em Cuiabá.

     Acredito que essa sensação vai se repetir. Até fim de semana que vem.

Tirando os sapatos.

Comentários

  1. Meu filho por te amar tanto, penso muito obrigada meu Deus por você estar em casa e com saúde.

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  2. Como sempre as suas narrativas são muito envolventes. Meu coração está em festa com o seu regresso.

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  3. Graças ao nosso bom Deus, está de volta com saúde

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