Contos Amazônicos de Inglês de Sousa - quase decepciona, mas surpreende

 

Após ler Contos Amazônicos, descobri que Inglês de Sousa é um escritor injustiçado.

Nós classificamos Inglês de Sousa como naturalista, uma corrente que radicaliza o realismo. No ensino médio, aprendemos que essa corrente naturalista foi inaugurada por Aluísio de Azevedo com o romance “O Mulato”, mas isso é discutível. De fato, O Mulato é um livro genial (eu pelo menos acho), porém Inglês de Sousa publicou “O Cacaulista” em 1876, fincando a bandeira naturalista no Brasil 5 anos antes de Aluísio.

Mas não vim aqui passar a mão na cabeça de Inglês. Ele é apenas mais um escritor genial injustiçado pelo ensino médio. Vamos conversar sobre o livro “Contos Amazônicos”.

Seus contos são sempre ambientados na floresta amazônica e é impossível lê-los sem um glossário de termos regionais. Inglês é um autor prolixo. Isso quer dizer que gasta muitas palavras para descrever as coisas, às vezes falando demais para dizer muito pouco, como um Eça de Queiroz. A diferença é que lendo Inglês de Sousa eu não dormi.

Paradoxalmente, Sérgio Buarque de Holanda, ao criticar o livro, ressalta a pobreza vocabular do autor ao pintar a floresta amazônica, muitas vezes apenas descrita como “a floresta”. De fato, a natureza não recebe tanta atenção do escritor paraense. É isso que acontece quando um indivíduo que dedica muito tempo a ler livros tenta descrever uma cena do campo, sem saber nomes de pássaros, frutos e plantas. Por outro lado, isso evidencia que é impossível agradar a todos, pois se alguns o acham prolixo, outros o acusam de lacônico.

À primeira lida, eu fui preso pela sua capacidade de me conduzir pela história sem me cansar dela, mas havia algo que me incomodava muito.

Seus contos amparam-se fortemente nos preconceitos de raça e nas superstições do povo amazônico. Isso leva a duas coisas que para um leitor são fatais: a previsibilidade do enredo, e a sensação de estar sendo subestimado.

Por previsibilidade eu me refiro à sensação de que se sabe para onde a história está se encaminhando. Um bom exemplo é “O Baile do Judeu”, que descreve o alvoroço gerado na vila. Apesar do preconceito explícito contra o judeu, que supostamente adoraria uma cabeça de cavalo, os moradores da vila não faltaram à festa, que tinha tudo do bom e do melhor. Tudo corria bem, até que algo ocorre pondo fim à festa, e ninguém mais voltou à casa do homem, confirmando o preconceito contra ele. O medo irracional sempre se confirma no final, por isso se torna previsível.

E isso nos leva à sensação de estarmos sendo subestimados. Vivemos num tempo que ridiculariza superstições. Desenvolver todo um roteiro unicamente no medo de que uma antiga lenda se realize perde um pouco da graça quando não se acredita mais nessa lenda. Esses dois problemas só pararam de me perseguir quando aceitei que eu deveria exercitar minha capacidade de viajar no tempo e pensar como um homem amazônico da época.

O destino dos personagens nos “Contos Amazônicos” nos obriga a traçar um elo entre essa coletânea e “O Mulato”, de Aluísio. Em ambos os livros, o fim é sempre trágico. Ambas as obras estão ligadas pelo estilo naturalista, no qual o narrador é como um cientista atrás da moita e os personagens são animais interagindo entre si. A função de cada personagem é uma consequência de sua raça e do ambiente em que vive. O livre-arbítrio é menos importante, pois as ações são resultado da luta por sobrevivência, e não da discussão sobre certo e errado.

Essa característica está em todos os contos, mas culmina de maneira gritante no conto “O Rebelde”. O conto são lembranças do narrador no tempo de infância, quando ocorreu a revolta da Cabanagem, na antiga Província do Grão-Pará.

Segundo o jovem narrador, os cabanos eram homens e mulheres de cor dispostos a matar todos os brancos e maçons, com requintes de crueldade. Poupavam apenas pobres e tapuios que simpatizavam com eles, como o “velho do outro mundo”. O velho era um senhor negro, excluído por todos, mas amigo do rapaz. Não era cabano, nem concordava com seus métodos, mas compreendia a revolta. Apesar da repulsa dos familiares pelo homem, é a ele que recorrem para salvar o menino. Perdoem-me o “spoiler”, mas no fim das contas o velho deixa o menino num lugar seguro e vai ao encontro do líder cabano, como foi exigido dele. Nunca mais se viram.

Anos depois, o menino, já um homem bem sucedido, herdeiro de toda a influência do pai morto pelos revoltosos, descobre que o velho do outro mundo estava entre os cabanos quando foram derrotados e foi condenado à prisão perpétua, apesar dos protestos de que apenas estava no lugar errado na hora errada. O rapaz liberta o velho, mas o vê morrer dias depois.

Assim como n’O Mulato, o personagem negro morre no final, embora merecesse a glória de um herói. Os personagens no conto de Inglês de Sousa lutam pela própria vida. Os cabanos, motivados pela profunda desigualdade e pela exploração, juram os brancos de morte, e estes, por sua vez, fogem como baratas e prometem a revanche. O velho do outro mundo é o único que tenta reverter esse ciclo de violência, ajudando seus opressores, mas ao cabo é posto no seu lugar, independentemente da sua intenção de fazer o certo.

Esta é uma leitura que exige na maior parte um pouco de paciência do leitor atual, pois requer uma imersão na mentalidade da época. Sem essa imersão, a obra lhe parecerá inocente demais. Em outros trechos, entretanto, Inglês de Sousa provoca a curiosidade do leitor ao pôr a vida dos personagens em perigo. “E agora?” Pensa o leitor.

Decerto, “Contos Amazônicos” é um prato cheio para os adeptos do identitarismo, pois se encaixa bem na narrativa da opressão, mas faz isso sem levar o conceito da luta de gêneros ad infinitum, onde há um grande gênero opressor e as intermináveis camadas de oprimidos. É genial, porque descreve uma realidade a partir de um ponto de vista sem ignorar outros.

Recomendo.


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Meu nome é Mateus Elias e sou autor deste texto.

Sou cuiabano de chapa e cruz, também conhecido como Xomano do Saber.

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Comentários

  1. Muito bom! Fiquei com vontade de ler!

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    1. Ótimo. Pode ter certeza de que se fosse ruim o texto terminaria com "não recomendo"

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  2. Sua escrita nos puxa para entrarmos no texto. Valei a recomendação.

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  3. Sua escrita nos puxa para entrarmos no texto. Valei a recomendação.

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  4. Filho, você nos convida para leitura de forma muito gostosa, numa interação fácil, parabéns 👏👏👏

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    1. Compartilhe com os amigos para mais pessoas terem essa experiência!

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