Como vim parar em Bragança - o carinho bruto do destino

     Eu estava começando o quarto ano da faculdade de Engenharia Civil. Como todos os outros, parecia mais difícil do que os anteriores, mas sabia que, como em todos os outros, eu me sairia bem. Eu queria começar a ter experiências na engenharia. Já tinha estagiado, mas numa área totalmente diferente. Fiquei seis meses estagiando na Secretaria de Relações Internacionais da UFMT, que eu carinhosamente doravante chamarei de SECRI. Lá aprendi muito e fiz amigos também.

     Queria o mesmo na engenharia.

No dia da matrícula na universidade, levanto o trote,
ou "praxe", como chamam na terrinha.

     O ramo das engenharias é muito competitivo. Um dá dedada no olho do outro para pegar a vaga, não importa qual seja. Prevendo essa situação, redigi um belo currículo no modelo mais elegante que o Word me deu e fui por aí distribuindo nas empresas que conhecia. Ainda não tenho ideia definida sobre o que mais me apetece na engenharia civil, mas as áreas de estruturas e transportes me atraíam. Fiz uma lista de todas as empresas da região em que eu poderia estagiar. Quando levava o currículo, dava um “ok” do lado.

     O tempo passou e quase havia mais “oks” do que empresas. Estava com pressa para começar a trabalhar, mas ninguém me contactava. Foi aí que fui chamado para uma seleção numa empresa que administra rodovias em Mato Grosso. Ela é conhecida por pedir do candidato algo diferente. Ao invés de uma simples entrevista, pedem um vídeo de apresentação, por exemplo.

     É perfeitamente natural que um jovem universitário tenha pressa para conseguir um estágio. No Brasil, ao contrário do que acontece em alguns países, o estudante pode estagiar durante o curso e, na verdade, é obrigatório no último ano para mim. Eu, nessa condição, não fugia da regra e estava em polvorosa para começar logo. Mas não era uma simples vontade. Era certeza absoluta, era uma fé, uma convicção profunda de que eu conseguiria um estágio fascinante que me encantaria o coração e far-me-ia apaixonar-me pela engenharia. Imagino, caros leitores, que passa pelas suas cabecinhas curiosas a pungente indagação do que poderia me dar tanta certeza. Pois bem.

     Senta que lá vem história.

     Algumas semanas antes tinha sido lançado um edital de mobilidade internacional pela SECRI. Para quem não sabe, mobilidade é um período de estudos numa instituição diferente daquela em que o aluno está matriculado. Por exemplo, um estudante matriculado na UFMT pode ir estudar um semestre na Sorbonne e voltar, sem deixar de ser estudante da UFMT. Eu tinha me candidatado para estudar na Universidade do Porto, em Portugal. Eu tinha curiosidade para conhecê-la porque sou fã de uma youtuber chamada Inês Guimarães, conhecida como Mathgurl, e ela estudava nessa universidade. Não era um motivo racional. Simplesmente ouvi falar muito dessa universidade e resolvi que iria para lá. Minha segunda opção era o Instituto Politécnico de Bragança, o IPB, no mesmo país. Sempre quis conhecer a terra dos meus antepassados lusitanos.

     Eu estava confiante de verdade, mas o resultado do edital caiu na minha cabeça como um balde de água fria e acabou com meus sonhos. Apesar de gostar dos estudos, nunca fui uma pessoa voltada para o mundo acadêmico, que é justamente o que o edital valoriza. Os candidatos são selecionados com base na pontuação que fazem. Eu marquei alguns pontos por ter participação em projeto de pesquisa, por ter certificado de línguas estrangeiras, por ter frequentado cursos extracurriculares... Mas a maioria das coisas que eu tinha não me dava mais que 5 pontos, enquanto só um artigo nacional vale 10 e um internacional vale 20. Qualquer pessoa que tivesse menos que eu, mas tivesse também um artigo publicado já estava muito na minha frente. Resumindo, não tive pontuação suficiente e fiquei na vontade.

     Ditados populares não são os melhores conselheiros, mas se você acompanhou minhas últimas memórias já aprendeu que é bom ter um na ponta da língua para causar um efeito diferente. As pessoas gostam de ouvir uma frase antiga e repetida por séculos para ter a sensação de que existe uma espécie de energia mística superior a nós que é intrínseca à existência humana e que, por isso mesmo, ultrapassa as gerações e supera as tendências das épocas. Minha mãe conhece vários e nada a impede de criar alguns de vez em quando. Ela sempre me disse que “quando uma porta se fecha outras se abrem”. É como escolher um curso na faculdade. Se a pessoa não gosta de matemática, as opções de escolha são reduzidas consideravelmente e fica mais fácil decidir. Nesse caso, se ficou claro que a mobilidade não era para mim, então o destino me reservava um belo dum estágio, que era a outra opção.

     Então mergulhei fundo. Pulei com a mente fixa na ideia de que aquele ano era o ano em que o mercado de trabalho conheceria o futuro engenheiro Mateus Elias.

     Quando a empresa das rodovias me chamou para a seleção eu tive fé de que a vaga era minha. O desafio desse ano era montar uma apresentação em Power Point falando sobre mim. Ao invés de sentar-me e falar com duas pessoas, uma que faz perguntas e outra que analisa meus movimentos involuntários de nervosismo, eu teria de me apresentar em frente a uma plateia. Ou seja, mais pessoas observariam meus movimentos involuntários de nervosismo.

     Eu uso o programa com muita facilidade. Faço coisas que pouca gente sabe que é possível. As figuras se mexiam de uma maneira empolgante, fiz vários efeitos que pareciam naturais e ao mesmo tempo impressionantes. Ficou realmente muito bom. Enviei o arquivo e esperei o dia da apresentação.

     Um dia depois recebo um telefonema. Eu não gosto de atender a números desconhecidos, mas quem manda currículos atende sem pensar duas vezes. Poderia ser a empresa dizendo que amou minha apresentação de um jeito, mas de um jeito, que queria que eu fosse imediatamente ao escritório e que me pagariam duas vezes o salário de um estagiário comum. Não custa nada sonhar, mas não foi nada disso. Era o dono de uma outra empresa, uma prestigiada empresa mato-grossense de projetos estruturais.

     E ele precisava de um estagiário:

     “Nossa empresa é focada em projetos estruturais, mas nossos clientes começaram a nos trazer novas demandas, e quando a oportunidade bate na nossa porta, a gente não pode dizer não.” Eu escutava, concordando. “Vamos começar a trabalhar no acompanhamento de obras e precisamos de um estagiário para isso. Interessado?”

     É claro que eu estava. Eu não tinha pensado nisso inicialmente, mas seria maravilhoso para mim.

     “Tenho interesse sim”, respondi.

     “Então amanhã esteja aqui. Vamos conversar e podemos começar as atividades.”

     E assim foi.

     Eu estava elétrico. Senti-me aliviado. Acabava ali aquela sensação agoniante de que muitas pessoas olharam para meu currículo e não o acharam interessante, uma sensação que passa pela cabeça de muitos trabalhadores o tempo todo.

     Mas restava a dúvida mortal. Estagiar numa empresa de projetos estruturais de renome seria ótimo para mim, mas a empresa das rodovias era igualmente influente. Se uma delas fosse duma área de atuação da qual eu tivesse extrema aversão, então seria fácil escolher, como um curso na faculdade. O problema é que as duas empresas pareciam ótimas e eu não tinha preferência. Depois de muito sofrer com meus pensamentos, optei por ficar com a empresa de estruturas. Eu já estava nela. Como diz o outro ditado, “vale mais um pássaro na mão que dois voando.” O IBAMA que me perdoe.

     A transformação que se observa na aparência de um estudante que começa a estagiar não passa despercebida. Aquele indivíduo que andava aos farrapos tira do armário suas roupas de ir a casamento que nunca usa, tudo para causar uma boa impressão. Eu não fui exceção. Mudei da água para o vinho. O rapaz que ia à universidade como um mendigo passou a portar um traje tão elegante que os comentários a respeito eram inevitáveis. Acrescentando-lhe o semblante do meu perpétuo sono à caracterização do personagem, transformei-me na perfeita representação de um pai de família, com contas a pagar e um bebê para ninar. Não que fizesse qualquer uma dessas coisas...

     O primeiro dia de estágio foi apenas uma conversa, e eu logo preenchi um documento com as informações pessoais necessárias para o termo de compromisso do estágio. Poucas semanas depois, logo que o meu seguro de vida foi feito, o termo podia ser impresso, assinado e meu estágio estaria oficializado. Com alguns dias de convívio com meu novo chefe, eu perguntei se poderíamos assinar o papel e deixar tudo nos conformes, mas ele estava demasiado ocupado e pediu-me que fizéssemos isso outro dia. Por incontáveis dias pensei em ir lhe pedir que assinássemos, mas todo dia era igualmente conturbado. Engenharia é uma área para pessoas que gostam de “piração”, sempre correndo contra o tempo para entregar o trabalho. Velho hábito de faculdade. Pedi mais algumas vezes e a resposta não diferia da primeira.

     Nas primeiras semanas foi assim, ia para a faculdade todo garboso, prestava atenção na aula e ia para o estágio.

     Num belo dia nublado, logo depois da aula, preparava-me para correr e chegar ao estágio a tempo. Enquanto procurava uma playslist para tocar durante o trajeto, notei um aviso, um e-mail. Basicamente, o e-mail me comunicava a ocorrência de um milagre. O IPB decidiu simplesmente aceitar todos aqueles da UFMT que se candidataram a uma vaga de mobilidade, e eu, com minha pontuação sofrida e diminuta, estava oficialmente selecionado para estudar um semestre na Europa, em Portugal, em Bragança.

     Eu não sabia o que fazer, sinceramente. Quando saiu o resultado inicial informando que eu não tinha sido selecionado, acordava triste e me mirava no espelho tentando me convencer de que era melhor assim. Penosamente, convenci-me. A vida tem dessas. Eu tinha acabado de me recuperar do cruzado de direita que ela tinha me dado, mas ela vem e me dá uma paulada bem em cima do machucado. Eu tive longas conversas com meus pais e a Júlia. Algumas eram totalmente técnicas, sobre datas, prós e contras, enquanto outras eram simples choradeiras. A dúvida foi grande, mas a chance de estudar fora do país não é para todos e dificilmente teria essa oportunidade novamente. A decisão que tomei vocês já sabem, e estou hoje estudando em Portugal.

     Restava, no entanto, o estágio. Eu aproveitava ao máximo o que eu fazia lá. Aprendi muito sobre orçamentos de obras, elaboração de estruturas e o cotidiano de uma empresa, mas uma hora teria de dizer que tinha de ir-me embora. Em algum momento eu teria de ir para Brasília fazer meu visto, o que me obrigaria a perder alguns dias de trabalho, e eu precisaria comunicar meu chefe. Tentei levar tudo na maior tranquilidade, conforme papai e mamãe me ensinaram. O nervosismo aumentava e estava chegando a hora de falar.

     Eis que um dia, enquanto eu desenhava a planta de muro de divisa de uma obra residencial, meu chefe me chama para conversarmos a sós. Eu muito diligentemente assinto e o acompanho. Quando me sento à mesa com ele, percebo que ele tinha na mão o meu termo de compromisso de estágio e o assinava. Logo que terminou, passou para mim, e eu com um sorriso no rosto comecei a assiná-lo.

     Então ele começou a falar:

     “As obras em que você ia trabalhar não deram certo, Mateus. Por isso vamos ter de descontinuar o seu estágio. A gente tá assinando este contrato para você comprovar que esteve estagiando aqui. Amanhã não precisa vir mais.”

     Pus minha assinatura, meio tremida e fora da linha. Foi a primeira vez que passei por essa situação de ser dispensado. Foi a vida novamente, me dando um empurrão bem mal educado. Dessa vez, por mais que ela tenha sido rude, empurrou-me para esta grande viagem, que era a melhor opção que eu tinha. Ali eu entendi um pouco mais de como funciona o acaso, vi que o senhor destino é esperto, e que “Deus escreve certo por linhas tortas”, direitinho como o ditado fala.


Eu em Bragança ao lado da imagem de satélite da minha casa em Cuiabá.

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